Agostinho, a guerra justa e o amor ao próximo


Agostinho é muitas vezes citado nas discussões modernas sobre a guerra Justa, por causa de suas cartas e sua posição a favor da guerra como um instrumento de estabelecimento da justiça, o uso da violência para a contenção do mal e até a tortura de inocentes para se chegar aos verdadeiros culpados e criminosos.
Seus textos, citados fora do contexto, são também utilizados para justificar a pena de morte, o armamento da população e até o ódio e a xenofobia muito presentes nas discussões atuais sobre imigração e violência dos maus (e dos "bons") nas cidades brasileiras.
Sua explicação de como cumprir o mandamento de Cristo é sempre citada como a base de sua defesa da chamada "guerra justa"
"Qual é o mal na guerra? Seria a morte de alguns que estão fadados a morrer de qualquer forma, para que outros possam viver em sujeição pacífica? Isso é apenas um desgosto covarde, e não um sentimento religioso. Os verdadeiros males da guerra são o amor à violência, a inimizade e crueldade vingativa, a resistência feroz, o desejo pelo poder e coisas afins. E é geralmente para punir tais ações, quando a força se faz necessária para infligir a punição, que, em obediência a Deus ou a alguma autoridade legal, bons homens guerreiam, quando se encontram em tal posição com respeito à condução de transações humanas, que a conduta certa requer que eles ajam ou façam outros agirem dessa forma." Contra Faustum, Agostinho (2011, XXII, p. 74)
A análise, no entanto, é muitas vezes simplista e baseada nos escritos da juventude de Agostinho, como a carta “Contra Faustum” de 398 d.C. um adversário gnóstico que argumentava contra a validade do Antigo Testamento por causa de sua matriz platônica, Agostinho era um sacerdote ordenado há apenas 7 anos, inflamado em sua controvérsia contra os gnósticos e sob o horizonte da Condenação do Papa Bonifácio da heresia Donatista e a subsequente perseguição do Império Romano contra os Donatistas.
De fato, Agostinho argumentava que a guerra ou violência seriam justas se estivessem alicerçadas sobre dois pilares:
1 –As Causas ou motivações e
2- a autoridade.
Se a causa ou motivação fosse justa, a guerra e até o uso da coerção e violência poderia ser exercida pela autoridade competente mas não pelo indivíduo, tomando a justiça em suas próprias mãos. Veja:
A paz deve ser o objeto do seu desejo; a guerra deve ser deflagrada apenas se necessária, e apenas com o fim de que Deus, por seu intermédio, possa livrar os homens da necessidade e preservá-los em paz. Pois não se busca a paz para que se fomente a guerra, mas a guerra se realiza para que a paz seja obtida. Portanto, mesmo na guerra, cultivai o espírito de pacificador, para que, conquistando aqueles a quem atacas, possas levá-los de volta às vantagens da paz (AGOSTINHO, 2 011, p. 6).
Note que Agostinho tenta criar uma dicotomia que combina muito com sua visão neoplatônica: O seu corpo pode fazer a guerra desde que seu coração ou sua alma continue amando e puro de intenção em relação aos criminosos. Agostinho imagina soldados cândidos que matam com amor no coração e conseguem não sentir ódio pelos inimigos.
No entanto, à medida que acompanhamos as cartas e escritos dele no decorrer do tempo percebemos que sua reflexão vai mudando gradativamente e já em 412 d.C., 14 anos depois na carta ao Tribuno Marcelino, Agostinho diz que ao escrever “Contra Faustum” o fez
“necessariamente sem muito tempo para reflexão”.
É na Cidade de Deus, sua obra prima, quando já é um bispo maduro e cansado de tantas lutas e de tanto sangue derramado, especialmente nas controvérsias contra o Donatismo que ele vai lamentar a necessidade da guerra e de como aqueles que a iniciam, mesmo quando se é justo e necessário, muitas vezes se imbuem das mesmas razões que ele alega combater. Veja:

"E assim todos os homens desejam ter paz com seu próprio círculo, com quem desejam governar da maneira mais conveniente. Pois mesmo aqueles que guerreiam contra os que desejam tornar seus, desejam lhes impor as leis de sua própria paz."
A Bonifácio, o papa Agostinho escreve
[...] [O magistrado declara guerras] enquanto lamenta a necessidade de guerras justas, se é que se lembra de sua condição de homem; pois, se não fossem justas, ele não as travaria, e sua preferência seria ser livre de todas as guerras. Mas é o mau procedimento da parte opositora que compele o sábio a deflagrar guerras justas; e esse mau procedimento, mesmo que não tivesse originado nenhuma guerra, ainda assim seria causa de angústia para o homem em se tratando do mau procedimento do homem. Portanto, qualquer um que pense com dor sobre todos esses grandes males, tão horríveis, tão cruéis, deve reconhecer que isso de fato é uma miséria. E se qualquer um pensa sobre isso sem dor mental, trata-se de uma miséria ainda maior, pois tal se encontra em estado de felicidade por haver perdido todo o sentimento humano (AGOSTINHO, 2011, XIX, p. 7).
Pensar na Guerra, mesmo que justa, sem dor mental é para o Agostinho de muitos anos depois de “Contra Faustum”, uma miséria. De fato, mesmo os defensores mais ardorosos da “guerra justa” não podem sentir prazer em ter que guerrear.
Ao escrever sobre o contraste entre a cidade dos homens, a sociedade atual, o presente século, também representado pela cidade imperial, Agostinho vai fazer uma diferenciação entre a verdadeira paz e a paz humana.
“A diferença fundamental entre a verdadeira paz com Deus – o alvo da cidade celestial – e a paz humana se torna central para Agostinho (2011, XIX, p. 13), que as distingue da seguinte forma: ”
A paz entre o homem e Deus é a obediência bem ordenada de fé à lei eterna. A paz entre homem e homem é o acordo bem ordenado. A paz doméstica é o acordo entre aqueles membros da família que exercem autoridade e os que obedecem. A paz civil é um acordo semelhante entre cidadãos. A paz da cidade celestial é o desfrute perfeitamente ordenado e harmonioso de Deus, e de uns aos outros em Deus. A paz de todas as coisas é a tranquilidade da ordem.
Concluo, não com a minha própria conclusão, mas com a conclusão de um artigo que me inspirou nesta reflexão, a quem sou devedor da pesquisa e reflexão bem-feita sobre o assunto. O artigo pode ser encontrado em: http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/cr/article/view/3133/2946
Recomendo a sua leitura.
“Santo Agostinho é, de fato, figura-chave nas origens do pensamento cristão sobre a guerra. Entretanto, para que suas ideias sejam compreendidas e apropriadas na discussão contemporânea, diversos fatores devem ser considerados. Em nossa análise, dois fatores foram destacados. Em primeiro lugar, muitas questões pertinentes a discussões contemporâneas sobre a guerra jamais figuraram em seu horizonte simplesmente porque a forma sociopolítica de seu mundo era diferente, e, portanto, as próprias guerras eram percebidas diferentemente. Seu mundo não se encontrava dividido em nações, conforme compreendidas na modernidade. Portanto, jamais Agostinho teve de lidar com a questão de guerras travadas entre nações independentes e igualmente soberanas. A guerra, conforme concebida por Agostinho, era travada entre aqueles dentro e fora do Império Romano, entre o cristianismo e o paganismo, entre conquistador e conquistado. Não se pode simplesmente recorrer à visão de Agostinho sobre a guerra sem que se considere o fato importante de que há significativas diferenças entre seu mundo e o nosso, entre suas guerras e as nossas. Nesse sentido, é preciso considerar que muitas de suas concepções, como sua aceitação da prática da tortura, estaria em total dissonância com a teoria contemporânea da guerra justa (HUNSIGER, 2008).
Em segundo lugar, é possível notar uma mudança na atitude de Agostinho com relação à guerra. A não percepção dessa mudança pode levar a uma compreensão superficial dos elementos da doutrina da guerra justa em Agostinho (MILLER, 2009). Embora jamais tenha abandonado sua visão de que a guerra é um instrumento necessário para a preservação da ordem e da paz, seu envolvimento pessoal na complexa e violenta situação sociopolítica no norte da África, especialmente no que tange à coerção dos donatistas e a outros grupos sociais, levou-o a uma crescente sensibilidade aos males inerentes à guerra. Ele se mantém consistente na afirmação de que as atitudes e disposições interiores são os fatores gerativos do mal nas guerras, mas, de sua atitude simplista à questão da perda da vida humana em Contra Faustum, ele passa a uma reflexão que genuinamente busca resolver o dilema do dever moral dos governantes e a necessidade do emprego da violência, seja esta justificada ou não. (CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – HISTÓRIA E SOCIEDADE v. 9 • n. 1 • 2011 - A LEGITIMAÇÃO DA GUERRA NO DISCURSO ÉTICO E POLÍTICO DE SANTO AGOSTINHO de Rodrigo Franklin de Sousa Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Coordenador do Curso de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/cr/article/view/3133/2946

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